Mario Sergio Conti

Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".

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Morrer é uma arte

Peter Schjeldahl mostra que nada é banal quando a indesejada das gentes chega

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O comediante Mel Brooks deu certa vez um sábio conselho a quem quer viver bastante: "Nunca corra para pegar o ônibus". O diretor de "O Jovem Frankenstein" sabia do que falava; está com 98 anos.

Peter Schjeldahl não seguiu o mandamento e se deu mal. Ao correr como uma gazela para pegar o ônibus, tropeçou e tomou um tombo daqueles. Sangrando, com os óculos esfrangalhados, sem saber onde estava nem quem era, foi de ambulância para o hospital.

Fizeram-lhe uma tomografia para ver o estado da coluna vertebral. Ela não tivera danos, mas descobriram uma mancha no pulmão. Era um câncer em estágio avançado. O oncologista deu seis meses de vida.

Ao centro da imagem há o retrato de um homem idoso, com chapéu cinza e mãos postas sobre o peito. O homem foi desenhado em linhas pretas e finas enquanto o colorido foi feito com pinceladas agitadas e fortes em tons de azul e verde.
Ilustração de Bruna Barros para coluna de Mário Sérgio Conti de 27 de julho de 2024 - Bruna Barros/Folhapress

Sua filha perguntou o que gostaria de fazer pela última vez. Revisitar Roma, Paris? Preferiu ir a um jogo de basquete. Começou um tratamento experimental, imunoterápico. Deu certo e viveu mais quatro anos.

Schjeldahl era estimado em Nova York. Foi crítico de artes plásticas por décadas, primeiro no Village Voice e depois na New Yorker. Mais jornalístico que teórico —mais Robert Hughes que Clement Greenberg— tinha um estilo límpido, idiossincrático, isento de jargões.

Essas virtudes são a espinha dorsal de "The Art of Dying", seu livro póstumo. Elas convivem com a mancha do câncer que se espalha. A morte, diz, não é uma escultura, que se olha de todos os lados. É uma pintura, tem de ser encarada de frente porque o avesso nos é vedado.

Schjeldahl escreveu até o fim, morreu 11 dias depois de publicar o último artigo. A primeira parte do livro é um ensaio autobiográfico. A outra, com os derradeiros escritos para a New Yorker, dialoga com os retalhos da vida que contou. Nada fica banal quando o fim se aproxima.

Relata o que se lhe passou com leveza, mesmo os anos pesados como chumbo. Foi viciado em drogas e alcóolatra. Não terminou a faculdade. Empenhou-se em ser poeta e malogrou. Começou a escrever sobre arte porque gostava, mas com uma ignorância irrestrita do assunto.

Não generaliza sua experiência. É subjetivo e cita Baudelaire: "cultivei minha histeria com deleite e terror". Foi assim ao ser convocado para lutar na Guerra do Vietnã. Após três dias se drogando, sem dormir nem tomar banho, virou um pano de chão.

"Os encarregados do alistamento me descartaram como uma camisinha usada", conta. O relato não acaba com essa nota bem-humorada; diz ainda: "Fiquei com remorso. Pensei que outro cara teria de ir no meu lugar. Fingi tão bem a psicose que minha sanidade bambeou durante meses."

Não tem lições a dar sobre seus vícios. O LSD lhe permitia ver sua mente funcionando e "dissolvia o ego como Alka-Seltzer na água". Acha que o álcool destrói a vida, enquanto o cigarro a encurta. Parou com as drogas e a bebida graças ao AAA e ficou 27 anos sóbrio.

Não parou de fumar porque o cigarro é imbatível, relaxa e excita ao mesmo tempo. Calcula ter fumado 1 milhão de cigarros, e curtiu cada um deles. Fumou até morrer para não passar pela "tragicomédia da fissura por nicotina" durante o tempo de vida que restava.

Schjeldahl faz abstrações sobre seu ofício, a crítica: a atenção é crucial, tudo pode ser arte quando se põe uma moldura em volta; estou aberto ao novo, sem ser prescritivo nem prospectivo; quanto menos arte se vê, mais tolo se fica; a originalidade é superestimada, mas não pelos realmente originais.

Ele foi amigo de diversos artistas, de Anselm Kiefer a Willem de Kooning, que lhe deu uma pintura cuja venda lhe pagaria o aluguel por uns dez anos, e nunca a leiloou.

Veio a se afastar de todos por incompatibilidade de objetivos: os artistas queriam reconhecimento e ele, sagacidade. "Éramos aspiradores, um sugando o outro", diz.

Pouco depois de saber do câncer, veio o confinamento causado pela Covid, e com ele o inferno para críticos de artes plásticas —não poder ir a exposições e museus. Mesmo assim, seguiu resenhando, mas catálogos e mostras online.

Passada a pandemia, foi a Madri com amigos, entre eles o humorista Steve Martin, autor do prefácio de "The Art of Dying". Queria ir ao Museu do Prado rever "o melhor quadro do melhor dos pintores", "As Meninas", de Velázquez. Até aí, nada de mais. Reconhece que "a única maneira de não ver Velázquez é ser cego".

Para além do esplendor da pintura, o que o crítico vê nela são "as sombras no ambiente, os desastres e mortes que virão". Falava de "As Meninas", óbvio, mas sobretudo da indesejada das gentes, que logo o levaria. Schjeldahl morreu em 2022, aos 80 anos.

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